Gestalt-terapia

Gestalt-terapia

por Hugo Elidio Rodrigues

Para uma melhor compreensão do que é a "Gestalt-terapia", é importante, antes, efetuarmos uma pequena visualização do contexto histórico, no qual esta vertente da Psicologia Clínica encontrou terra fértil para crescer.

Comecemos pelo final do século passado, na Europa. Com o esforço de um conjunto de estudos que queria chamar a si mesma de "ciência", nasce o primeiro laboratório de Psicologia. Este laboratório (fundado pelo Dr. Wilhelm Wundt, em 1879 na Universidade de Leipzig) trazia uma forte influência em sua linha teórica advinda do positivismo científico, que imperava na época e que continuou imperando durante décadas posteriores (WERTHEIMER, 1985).[1]

O trabalho do Dr. Wundt continha uma grande preocupação com a quantificação, análise e previsibilidade das reações humanas. Consequentemente, a base deste trabalho era o "visível", o que era passível de observação e testes que - seguindo a orientação científica - poderiam ser repetidos sob as mesmas condições, achando-se o mesmo resultado. Deste modo, o trato com a questão da psique humana foi reduzido ao "lidar com comportamentos", ao que o ser humano exteriorizava.

Outros teóricos, como John B. Watson (que lançou em 1913 o texto "A Psicologia tal como vê um Behaviorista" - SKINNER, 1985)[2], aprimoraram os pressupostos desta Psicologia com base no comportamento, trazendo-a para a prática clínica e estruturando um sistema próprio, que ficou conhecido como "Behaviorismo". 

Porém, já próximo do início do século XX, o trabalho de Freud foi aparecendo no cenário mundial, trazendo uma consistente e profunda teoria sobre a personalidade humana (a Psicanálise), partindo dos comportamentos patológicos (sua teoria estruturou-se inicialmente sobre a histeria - FREUD, 1979)[3]  e apresentando uma preocupação muito maior com os processos mentais. Ou seja, priorizando o "mundo interno".

Através do trabalho do Freud, o homem percebeu o poder de sua vontade, de seu desejo e que todo o positivismo, toda rigidez moral não seria capaz de dominar a natureza humana; já que tal natureza encontrava-se estruturalmente cindida, entre uma parte pequena e passível de controle - que era a consciência - e outra parte insondável, incontrolável e pulsional, que era o inconsciente.

Em resumo, havia então no cenário mundial do início do século XX, algumas abordagens que apresentavam tentativas de compreensão da psique humana, trazendo luz para questões fundamentais das relações intra e interpsíquicas. Porém, havia alguma coisa que faltava...

Na Psicanálise, o ser humano era visto como algo "analisável". Dividido em "partes" que viviam em conflito (consciente x inconsciente, id x superego, Eros x Tanatos), o ser humano dependia da análise destas "partes" para ser compreendido. A análise consistia em um trabalho "arqueológico", escavando o terreno superficial da personalidade do indivíduo e atingindo partes esquecidas cada vez mais remotas, longínquas (inconscientes), porém determinantes no suprimento da energia (libido) que causava a interferência na vida deste indivíduo, impedindo-o de viver satisfatoriamente (FREUD,1979).[4]

Logo, havia uma transferência de responsabilidade implícita nesta abordagem terapêutica, que saía das mãos do paciente e ia para as mãos do psicanalista, já que apenas este detinha o "conhecimento" para a interpretação dos atos e sonhos do indivíduo. Com isto, criou-se uma dependência do paciente ao psicanalista. Segundo Erick Fromm: "... o fato de ter um analista era frequentemente usado para evitar um temido, mas inevitável fato da vida: ter de tomar decisões e aceitar riscos." (FROMM, 1971 – pág. 11).[5]

No Behaviorismo, o trabalho já era mais "superficial" (entendido aqui como baseado na superfície, sobre aquilo que se vê: comportamentos) e apoiado na possibilidade de novas atitudes a serem aprendidas. A patologia consistia em um "mal aprendizado", e a cura era obtida através de um novo processo de reaprendizagem (ou recondicionamento), para suprimir da lista de comportamentos do indivíduo, aquele que era "indesejável". A existência de um mundo interior era ignorada e toda psique humana era explicável através de um jogo de forças entre estímulos e respostas, mais tarde aperfeiçoadas para conceitos como condicionamentos operantes, reforços positivos e negativos, etc.

Ressaltamos aqui que nossa intenção é, tão somente, apontar de uma maneira breve como era o contexto na qual surgiu a Psicologia da Gestalt e, mais tarde, a Gestalt-terapia. Tanto a Psicanálise como o Behaviorismo são escolas de Psicologia que merecem todo um trabalho específico para demonstrar seus pressupostos e conceitos básicos. No escopo deste trabalho, nosso objetivo foi apontar algumas das características destas escolas que originaram controvérsias e que estimularam o aparecimento de outras visões do que é o ser humano.

Em reação a estas visões, principalmente em reação ao trabalho de Wundt (KÖHLER, 1980)[6], surge na Alemanha um campo de pesquisa chamado de "Psicologia da Gestalt ", que primava pela consideração das relações entre as partes e na determinação da percepção do todo em confronto com a ideia do associacionismo (Nota 1).

A palavra alemã "Gestalt" não tem uma tradução literal para o português, mas contém um sentido de "forma" , de "um todo que se orienta para uma definição", de "estrutura organizada". Um exemplo do que a Psicologia da Gestalt tentava dizer poderia ser ilustrado com o fenômeno ilusório do movimento aparente das lâmpadas em série. Ao colocarmos várias lâmpadas, uma ao lado da outra e acendermos uma de cada vez, apagando a anterior, temos a impressão que a luz "corre" pelas lâmpadas. Ou seja, surge das "partes" (cada lâmpada) uma forma nova, que dá um outro sentido ao "todo". O artigo sobre este sentido ilusório do movimento foi publicado pelo psicólogo gestaltista Max Wertheimer em 1912. Neste artigo, Wertheimer já prioriza a ideia de percepção como um conjunto, algo que sobressai a partir da relação entre as partes como um todo, e não pela associação de um estímulo ao outro.

Para uma melhor compreensão, segue um outro exemplo clássico utilizado pelos psicólogos da Gestalt. Quando ouvimos uma sinfonia, percebemos que ela é composta por várias partes, tais como o som de cada instrumento, o ritmo e a tonalidade musical. Estas "partes" nos trazem o estímulo auditivo que nos permite reconhecer a música tocada. Porém, a soma de tais partes - a própria sinfonia - não se resume a estas partes, de modo que, mesmo quando algumas destas partes mudam, ainda temos a chance de reconhecer o "todo", a própria sinfonia. Ou seja, podemos mudar os instrumentos, podemos até acelerar ou diminuir um pouco o ritmo, podemos tocar a sinfonia em outra clave musical (tom acima ou abaixo) e, mesmo assim, a qualidade do todo nos permitirá reconhecer a sinfonia. Como? Porque, segundo as pesquisas da Psicologia da Gestalt, na verdade percebemos é a relação entre as partes que compõem o todo.

A Psicologia da Gestalt foi um campo estritamente experimental, que se ocupou em trazer questionamentos que foram contrários à visão mecanicista (causa-efeito) e à visão atomística (que visa o átomo: a menor parte ou elemento constitutivo das coisas. Na Psicologia: busca determinar se a psique é formada por pulsões, ou emoções, símbolos, condicionamentos etc). Logo, Psicologia da Gestalt e Gestalt-terapia são assuntos diferentes, com campos de atuação e preocupações diferentes.

A Gestalt-terapia se preocupa com o campo clínico, com as técnicas de trabalho e estudos que visam dar ao homem as condições necessárias para seu próprio crescimento. Enquanto que a Psicologia da Gestalt foi um campo de pesquisa que trouxe uma série de novas perspectivas para entender a maneira com a qual o homem se relaciona com o mundo.

Assim, décadas mais tarde, outros psicólogos perceberam a importância do conhecimento que a Psicologia da Gestalt trazia e juntamente com outros pressupostos filosóficos (tais como a fenomenologia , a filosofia existencial-humanista e a filosofia zen-budista), a teoria semântica de Alfred Korzybski, com a Teoria de Campo de K.Lewin, a Teoria Organísmica de Goldstein e pressupostos psicológicos (tais como a influência de Wilhelm Reich e Alexander Lowen e do Psicodrama de J.L.Moreno) erigiram um campo de conhecimento voltado especificamente para a área clínica.

O primeiro autor da Gestalt-terapia foi o então psicanalista Frederic S. Perls, que lançou o livro "Ego, hunger and aggression" em 1942, já contendo uma série de considerações que tinham o objetivo inicial de produzir uma revisão da teoria de Freud (PERLS, 1975)[7], mas que, devido a sua controvérsia com alguns fundamentos da Psicanálise, originou o desligamento de Perls do meio psicanalítico (PERLS, 1979)[8].

Não mais preso ao rígido arcabouço teórico da Psicanálise, Perls investiu na estruturação de um novo campo clínico, escolhendo o nome de "Gestalt" para este novo campo e publicando nos EUA a primeira obra eminentemente gestaltista em 1951 (PERLS, GOODMAN, HEFFERLINE, 1980)[9].

Assim, o que é então a Gestalt-terapia hoje? É uma prática psicoterapêutica que se orienta por uma visão integradora do homem, procurando vê-lo como um todo, não como um "neurótico", um "esquizofrênico" ou como um "isso" ou "aquilo". A patologia é apenas mais uma das várias partes do todo que aquele indivíduo é, e sua "doença" é encarada como a maneira mais "saudável" que encontrou para enfrentar situações insuportáveis ou conscientemente inconciliáveis.

Não significa aí que há uma negação do estado patológico, do sofrimento do paciente pelo estado em que se encontra. Somente é feito um novo enfoque, baseado na constatação que - através de tal estado - a pessoa foi capaz de sobreviver e de chegar até ali, ao ponto em que está. E, assim como houve uma necessidade para esta pessoa organizar-se desta maneira (independentemente da consciência ou inconsciência dela sobre esta organização), a Gestalt-terapia questiona se não haveria outras maneiras, outras formas de ser e viver, que possam atender mais precisamente ao momento na qual a pessoa vive - suas necessidades atuais.

Esclarecendo melhor, parte-se do pressuposto que cada indivíduo apresenta sua específica organização interna; cada indivíduo é único e inigualável, e o seu funcionamento é sua melhor tentativa de se adaptar às pressões do seu meio. Logo, se houve uma estrutura constituída para dar conta de um problema sofrido, esta estrutura teve sua necessidade, surgiu para uma função em alguma época e se hoje é tida como uma "doença" é porque se encontra desatualizada em relação ao contexto presente de vida. Com isto, da mesma maneira que houve uma organização específica para gerar o comportamento patológico, parte-se do pressuposto que estas mesmas forças são capazes de se reorganizarem (ou melhor, atualizarem-se) para se adaptarem de uma nova maneira aos requisitos de hoje.

Com isto o trabalho clínico será voltado para uma ampliação da consciência do indivíduo sobre seu próprio funcionamento, sobre como ele age ou como se bloqueia em sua tentativa para alcançar seu próprio equilíbrio. Assim, o foco terapêutico é deslocado das mãos do terapeuta (do pressuposto detentor do "conhecimento") e vai para a relação terapêutica, onde o gestalt-terapeuta trabalhará para que o indivíduo perceba a responsabilidade sobre suas escolhas e - através do inicial apoio do terapeuta - alcance dentro de seu próprio tempo e possibilidades, uma atitude mais autônoma e autossustentada.

Para isto, o enfoque do trabalho visará sempre o que o indivíduo traz de uma maneira global (o que sente, o que experimenta, o que pensa, sua postura corporal, sua respiração etc) no momento presente, ou, como se diz na Gestalt-terapia, no "aqui-agora". Considerando o indivíduo como um todo, percebe-se que no que ele "é" se insere tudo o que ele foi. Logo, não há necessidade de sair do presente e partir para um passado que distancia cliente e terapeuta do foco das incertezas emocionais vivenciadas no "aqui-agora".

A Gestalt-terapia é uma prática que requer disponibilidade para investir, disponibilidade para "ir junto", para expor-se e envolver-se num processo "humano" e não em um processo "observador-objeto".

Concluindo, não temos a pretensão de esgotar aqui uma definição da Gestalt-terapia, mas cremos ter tocado em alguns dos pontos principais desta abordagem psicoterapêutica. Ressaltamos aqui que o enfoque principal desta abordagem é a própria relação. Devido a estas particularidades, a GT é um importante instrumento que pode ser usado por todo aquele que quer dar prioridade às relações humanas, que "cuida", que "trata" e que "acompanha".

NOTA 1:
( 1 ) Associacionismo: A teoria do Associacionismo teve como um dos seus principais fundadores, o filosófo David Hume (1711/1776). Este autor nos mostra que há certos princípios que regem as conexões entre as ideias, tais como os princípios de semelhança (uma ideia sugere uma outra semelhante), contiguidade (no espaço ou tempo, de modo que ideias surgidas em um momento ou em um local, podem ser lembradas juntas) e causa e efeito (uma ideia que gera uma consequência e sugere outras ideias advindas da primeira, ou também ao contrário, quando as ideias geradas pelo desdobramento de uma ação, nos sugere a ideia que deu origem a ação).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1]: WERTHEIMER, Michael - PEQUENA HISTÓRIA DA PSICOLOGIA , São Paulo: Cia Editora Nacional, 1985.

[2]: SKINNER, B.F. - SOBRE O BEHAVIORISMO , São Paulo: Cultrix, 1985.

[3]: FREUD, S. - A HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO , Edição Standard Brasileira das Obras Psicológica Completas, Vol. XIV, Rio de Janeiro: Imago, 1979.

[4]: FREUD, S. – NEUROSE E PSICOSE , Edição Standart Brasileira das Obras Psicolólicas Completas, Vol. XIX, Rio de Janeiro: Imago, 1979.

[5]: FROMM, E. - A CRISE DA PSICANÁLISE , Rio de Janeiro: Zahar, 1971.

[6]: KÖHLER, W. - PSICOLOGIA DA GESTALT , Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.

[7]: PERLS, Frederick - "YO, HAMBRE Y AGRESION" , Fundo de Cultura Economica, Cidade do México, 1975 (já traduzido em Português : "Ego Fome e Agressão" - pela Editora Summus).

[8]: PERLS, Frederick - ESCARAFUNCHANDO FRITZ -DENTRO E FORA DA LATA DE LIXO, São Paulo: Summus,1979.

[9]: PERLS, F. GOODMAN, P. e HEFFERLINE R.- GESTALT THERAPY, 3a.edição, New York: Crown, 1980.